"Nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos..."(Freud)

terça-feira, 1 de abril de 2008

Só Ler

Há certas coisas que percebemos tardiamente, como por exemplo, a delícia do sono vespertino. Se eu tivesse dado por mim das delícias deste simplíssimo benefício enquanto ainda podia usufruir dele, teria dormido mais. Mas agora é tarde.
Por estes dias aconteceu um episódio incomum – ao menos para mim: dois palhaços me fizeram perder a parada do ônibus. E “palhaços” não é xingamento não: estavam vestidos a caráter, fazendo gracinhas e vendendo cartões. Eles entregavam dois cartões do tipo postais, com versos melosos na frente e um poema atrás – poemas são delicados demais para que palhaços escolham o que vais dizer pra pessoa que amas. Melhor se viessem em branco – que estes dois rapazes vendiam por um valor simbólico para contribuir no projeto que eles desenvolveram, que consiste em levar alegria a pacientes infantis em hospitais da cidade. Acontece que, estando com os cartões e o dinheiro na mão (foram entregues a todos os passageiros) não consegui entregá-los ao palhaço mais próximo, antes de chegar ao local onde deveria descer do ônibus. Resultado: perdi a parada.
Frustrada, desci do ônibus várias paradas depois e foi então que decidi recompensar-me por esta interrupção do meu dia cuidadosamente arquitetado: fui visitar uma livraria onde há tempos estava me prometendo que iria. Não é uma “livraria” de fato: é uma espécie de sebo, que além de livros novos e usados, comercializa todo o tipo de bugigangas impressas: revistas de artesanato, gibis, etc. Passei cuidadosamente pelas prateleiras, sorvendo aquela indescritível sensação de proteção de estar cercada de livros, até o alto. As prateleiras juntinhas, abrigo, diversão, familiaridade, e eu ali, no meio disto tudo.
Notei que os livros estavam em ordem alfabética pelo nome do autor – um bálsamo para minhas manias de ordenação de coisas (ou transtornos obcessivo-compulsivos, como preferirem). Comecei a ler os títulos um a um, a deslizar pelas prateleiras, enfadada com o início do alfabeto por sua quantidade de romances insípidos e autores desconhecidos para mim. Aldous Huxley e Ágata Cristie salvaram a letra “A”, mas ninguém por “B”, nem “C”...
E corria as prateleiras, languidamente, até chegar ao “E’. Encontrei pérolas em meio à lama, mas novamente um mar de fastio, até chegar ao “J”, “L”, “M”... Que lacuna mais eloqüente preenchia as prateleiras, nestas alturas! Como foi que nunca percebi que os melhores autores concentram-se nesta região do alfabeto, enquanto os primeiros dedicam-se (em sua maioria) a romances tolos e vazios, feitos para quem a eles se assemelha?

Como não percebi em que consistia ser “Bruna”, antes? Começar com “B” deveria ter-me obrigado à resignação da leitura, nada de malabarismos com a escrita. Mas agora é tarde.