"Nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos..."(Freud)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O dia, a vida, a leitura


   Como explicar o que a leitura provocava nela? Era como se, enquanto ela não houvesse, a vida ficasse forçada a um stand by, como se nada do que fosse vivido pudesse ter um sentido, como se as coisas ficassem privadas de seu significado enquanto não pudessem se valer das palavras alheias para descrever sentimentos. E era assim: bastava ler pra se sentir movida, mexida, agitada. Compelida a fazer da vida qualquer coisa de diferente do que estava fazendo agora. 
    E seguia o dia, seguia a vida e também a leitura. Ela lendo e se sentindo obsoleta, perdida num tempo e num lugar onde ja não lhe era permitido existir com a plenitude que lhe era habitual, dividida entre a leitura e o desejo da escrita, entre a passividade exterior com que se aceitam as palavras de outros e o turbilhão interior por elas desencadeado. Queria viver, raios, queria a libertação de tudo o que a prendia e a forçava a uma existência inerme, parada e presa, suficientemente longe de tudo o que era seu, a ponto de não poder alcançá-lo, e dolorosamente perto, a ponto de cada movimento do dia mostrar-lhe as cores que ela havia perdido. 
    E havia o desejo, a necessidade de sentir, de tocar, de viver tudo aquilo que desfilava em letras diante de seus olhos. A sensação era de que haviam agulhas que, a cada compasso, a cada parágrafo, se enterravam mais e mais fundo em sua alma, como se um dançarino apaixonado por sua arte fosse obrigado a bailar sobre brasas. Sentia falta, sem saber de quem ou de quê, exatamente. Pensou em sentir falta de um amor seu, de um amigo, de um tempo. Mas era bobagem: o que sentia era falta de si mesma.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Fotoesia

Desde quase sempre, entendo que a necessidade de expressão é algo inerente ao ser humano. Me lembro de ter tido essa consciência por conta da minha inaptidão para o desenho, quando criança. Eu sentia que havia alguma coisa na minha alma, algo bonito, que eu queria desenhar pra poder mostrar como era. Era algo entre a alegria e o colorido, era uma coisa sem nome que eu queria a todo custo trazer pra fora, pro mundo. Então, eu pegava meus lápis todos, os mais bonitos e coloridos, e tentava derramar sobre o papel, em forma de rabiscos, aquilo que dentro da minha cabeça era o desenho mais lindo do mundo: e nada. Saía igual a todos os meus outros desenhos de criança, comuns, normais e sem nada a dizer, (exceto a urgência de um curso de desenho). A decepção era indescritível. Tentei mais algumas vezes, inspirada por um belo pôr-do-sol, ou pela descoberta de novos tipos de flor, mas o que estava na minha cabeça sempre era infinitamente distante do que eu conseguia colocar no papel, a despeito de toda a minha vontade e esforços.
E então eu descobri esse vazio, que me deixava frustrada e triste. De início, eu não o entendia bem, apenas sentia. Irritada, me obrigava a ir achar outra coisa para fazer, e geralmente encontrava algum aconchego nos livros, que me mergulhavam em outro mundo e me distraíam desse sentimento chato que me era ainda pior por suceder um sentimento tão gostoso (o da vontade de expressar alguma coisa bela).

Como criança hiperativa, aprendi a ler e escrever desde cedo, por as pessoas simplesmente não saberem mais o que fazer pra me distrair. Então, encontrava na leitura mundos novos, cenários grandiosos, histórias que eu não conseguiria imaginar sozinha. Quando todas as outras brincadeiras do dia (e eram muitas, meus dias tinham mais horas do que o das crianças que dormem bastante) me cansavam, eu recorria ao que se tornou uma das minhas atividades favoritas: ler.

No início de cada ano letivo as escolas públicas distribuíam os livros didáticos. Eles eram minha diversão por uma semana toda: eu os lia e relia diversas vezes (quase todos eles, só torcia o nariz para os de história, de narrativa geralmente pesada e que eu considerava "chatos"). E foi assim que, num acaso, descobri o mundo da poesia, através de um poema de Cecília Meireles, chamado "Lua Adversa". Da primeira vez que o li, achei um desperdício de texto (juro). Explico: a cada capítulo do livro, vinha um texto novo, com as questões para interpretação em seguida. Eu ignorava solenemente as questões, queria era ler os textos, todos, do início ao fim do livro. E encontrar um poema me pareceu tão absurdo: poucas palavras, um enredo desconexo, e com rimas! A mim parecia que aquele "texto" não fazia sentido algum, não contava história nenhuma, e que as rimas, no final das contas, prestavam um desserviço ao sentido da história. Até que, em um dia qualquer, reli o poema, por reler. E foi aí que a mágica da poesia se deu: eu entendi, de uma forma inesperada e quase mística, o significado (um deles) que aquele poema continha. Era como se eu tivesse aprendido uma nova língua, como se de repente as palavras passassem a ter um sentido e, mais que isto: um sentimento. O que aquele texto me dizia era cheio de cor, de imagens, com uma ideia clara e definida. Eu praticamente podia enxergar um cenário, um personagem, uma situação, mesmo que ela não estivesse descrita. Eu sentia algo que só com aquele poema eu sentia. No momento em que o li e entendi pela primeira vez, foi como se eu houvesse tirado uma fotografia da minha alma, como se houvesse capturado pra sempre uma série de sentimentos e sensações, que poderiam ser facilmente revisitados ao ler aquele poema.

E, até hoje, é isto que poesia representa pra mim: retratos de coisas que não se vêem, recipientes mágicos, feitos de letras, que guardam momentos e sensações. E não somente os guardam, mas os compartilham e permitem que seus autores permaneçam vivos no mundo, com tudo o que viveram, amaram e retrataram.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Falando em mudanças


Incríveis as coincidências da vida. Em um dia qualquer, estamos vivendo nossa vida como se fosse ser pra sempre assim. Entramos na rotina (ou a rotina entra em nós?) de tal forma, que já não fazemos planos para o futuro muito além das nossas férias - e olha lá. Na maior parte do tempo, estamos mesmo sobrevivendo para aguentar o mês, o semestre, o ano... Vivemos um dia depois do outro, acordamos e dormimos nos sentindo "só pelo feriado", esperando aquele momento em que poderemos "dar uma respirada" pra poder continuar na nossa roda de ratos. 
É aí que entra o inesperado: somos demitidos. Terminamos um relacionamento. Aparece, vinda do lugar mais inusitado, uma nova oportunidade de trabalho, que vai nos obrigar a alterar e repensar nossa rotina toda. Enviamos um e-mail inocentemente e o desenrolar dele acaba por nos mudar o rumo dos pensamentos no futuro. Viramos pais. E várias outras situações imprevistas, mas conhecidas, se encaixariam aqui. 
O fato é que é difícil imaginar quem seremos em dois anos, assim como há dois anos atrás, não poderíamos prever muito do que hoje somos. Até podemos planejar, pensar, definir alguns rumos pras nossas vidas, mas o fato é que Deus (a vida, o universo, use o termo que preferires) tem planos pra nós, e usualmente, eles não se encaixam com os nossos. E essa é a magia da vida: ela se move, se recria e se reconstrói. Ela se molda e se modifica a cada novo fato, novo acontecimento, novas descobertas. Pessoas entram em nossas vidas e mudam o rumo dela pra sempre; um livro nos modifica o pensamento, e já não conseguimos ver as coisas da mesma forma; uma viagem nos transforma irremediavelmente. A partir de de cada um destes fatos, somos diferentes. Não nos encaixamos mais na vida que pré-estabelecemos, e é necessário mudar. A vida urge, nossa alma grita, e acabamos por ceder e nos largar na torrente furiosa do desconhecido, do novo, das mudanças. 
Há quem relute, quem insista em se manter acorrentado á fraca ilusão de controle total sobre si mesmo e sobre sua própria vida. É uma questão de escolha, onde mesmo a falta dela não deixa de ser uma opção feita. Se optarmos por não ver, não agir, não decidir, nossa decisão já está tomada: ao invés de nadar ao sabor das marés e correntezas da vida, seremos por ela arrastados e não moveremos braços e pés para definir um rumo, ou sequer respirar, entre uma onda e outra. 
Mesmo com aquilo que não nos é permitido mudar, podemos alterar nossa percepção, e sermos felizes - ou não. A gente pode ver a beleza na tristeza (e vice-versa, infelizmente), dependendo de como treinarmos os olhos da nossa alma. 

Quase tudo é uma questão de escolha. Se não nos cabe escolher a ação, ao menos nos resta o ponto de vista. 

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Escritor de mentira

Eu não saberia ser uma escritora. E por escritor, entendo alguém que é capaz de escrever "de fato", não apenas por mero conhecimento da língua e posse da capacidade de digitar. Escritor é aquele que domina as palavras, que consegue o feito de escrever um livro todo, e expressar pensamentos complexos para além de si mesmo ou, ao menos, escrever com certa regularidade. Ele é capaz de escrever porque precisa, porque tem prazos a cumprir, textos e livros a serem publicados. Vive do que consumimos, do que buscamos e avidamente devoramos, com os olhos e a alma. Nenhum destes é meu caso. 

Escritores, na maioria das vezes, precisam escrever sobre aquilo que deles se espera. Precisam dominar seus sentimentos e distorcer a própria realidade pra entregar aquilo que buscamos. O escritor carrega dentro de si a alma de criança, que brinca livremente por mundos que só existem em sua cabeça, e os torna tão reais que é capaz de compartilhá-los facilmente com quem estiver próximo. Precisam inventar mundos, verdades, mitos. Escrever requer uma distorção da própria realidade e sentidos que só mesmo quem tem uma certa aptidão para a fantasia consegue. Mesmo os autores do cotidiano, aqueles que nos falam sobre o dia a dia e sobre nós mesmos, precisam sair de si para poder escrever de verdade. Precisam ter, no mínimo, a capacidade de se apossar de histórias alheias e de jogá-las com propriedade no papel (hoje em dia também conhecido como "tela do computador"). Ninguém conseguiria falar sobre si e suas vivências o tempo todo, ninguém tem histórias suficientes e, os poucos que as tem, raramente passam tanto tempo sentados, lendo (que é como se aprende a escrever) ou escrevendo. 

Creio que a escrita requer uma certa predisposição para a falsidade, para a criação de mundos e de mitos, para a existência em lugares que não existem. Escrever muitas vezes é mentir. Decidir viver da escrita é estar pronto para as mentiras, mesmo que veladas, a que esta nos obriga: escrever sobre alegria com a alma cansada, sobre tristeza com um sorriso nos lábios, escrever sobre o silêncio quando as palavras gritam tão alto que saltam para o papel e, muitas vezes, escrever sobre amor com o coração partido.  

A grande maioria dos bons escritores é de escritores de mentiras. Eles conseguem mentir para si mesmos enquanto produzem algo completamente distante daquilo que trazem na alma - e eu só poderia traçar um paralelo com um hipopótamo que acredita piamente ter gerado uma arara. Alguns acabam por mentir com tamanha convicção, que chegam a crer que o texto é mesmo seu. 

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Textos livres

Meus textos mais sinceros nunca foram escritos. Minhas palavras mais livres, vindas do recôndido mais oculto da minha alma, nunca puderam chegar aos dedos. Garanto que não foi proposital: eles é que não conseguem força para chegar à superfície no momento em que posso capturá-los e dar a eles uma forma. 
Os sentimentos e sensações que geralmente inspiram a palavra escrita precisam de liberdade total sobre nós, precisam nos ter por inteiro para poderem se manifestar. Não é suficiente estar esperando por eles, ou tentar resgatá-los ao sentar na frente do computador: eles desconfiam daquelas mãos livres e da mente solícita, e ficam quietos, até que estejamos completamente relaxados e desprevenidos. Quando tomamos banho, distraídos, quando estamos no ônibus, inertes e relaxados, ou especialmente, quando estamos com as mãos ocupadas e a mente completamente livre (estado usual de quem faz trabalhos manuais, como artesanato) eles vem. E vem intensos, num rompante de dentro pra fora, varrendo em ondas os sentimentos que estiverem no caminho entre nossa essência e nossa consciência. 
Ah, e a esta sensação de ser invadido por aquilo que se é e se pensa, não há equivalentes. É o puro prazer de ser, é o momento em que tomamos posse de quem realmente somos, e nem prestávamos atenção. 

***

Enquanto eu não puder relaxar a alma, enquanto não puder viver a distração que dá origem à escrita, não considero que vivo: existo. Só vivo de verdade quando posso parar o mundo para ser sem pensar, sem medir. Sossegar o espírito e ocupar as mãos.
Nesses momentos em que a consciência súbita do que realmente sinto me invade, é que sou livre. E, livre, posso continuar a ser quem sou, ou simplesmente escolher me transformar, a partir do ponto em que realmente souber o que trago na alma. 

sábado, 17 de setembro de 2011

Sobre formas e espaços

Um dia, sem mais nem menos, a gente acorda diferente. Já não queremos as mesmas coisas que até ontem queríamos, já não temos mais os mesmos pensamentos, nem os mesmos desejos. Percebemos que já não cabemos na mesma vida que sempre tivemos, que crescemos demais ou o espaço encolheu: é preciso partir em busca de um novo espaço, de um novo mundo.
Não é culpa nossa, nem de ninguém. Crescer faz parte de sermos humanos, é a ordem natural das coisas. Como a uma criança que cresce as bonecas já não satisfazem, a nossa alma já não se contenta com o que até então nos era certeza, e delas, a única que nos resta é a necessidade de mudança. É de dentro pra fora, é quase inevitável. 
Mas às vezes, relutamos. Insistimos no espaço já acostumado à nossa alma, queremos nos obrigar a viver apertadinhos, de uma forma que contraria os princípios de renovação do universo. Sofremos e, no final, acabamos por aceitar nossa nova condição da forma mais difícil. 

E se fizéssemos diferente alguma vez? E se aceitássemos que já não somos os mesmos, logo, as mesmas situações e perspectivas já não servem? E se... ?

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Desculpas e desculpas

   A vontade de escrever não passou. Nem sequer diminuiu. O que mudou foi a disposição para expôr minha alma e meus pensamentos. 
   A gente nem mesmo sabe o que quer da vida, na maior parte do tempo. Quando adolescentes, queremos destaque, queremos respeito, queremos ser os melhores. Mas ao mesmo tempo, a gente quer sumir na multidão, não queremos ser notados, queremos sossego. 
   Quem escreve quer companhia. Quer eternizar palavras e pensamentos, quer mostrar-se para ver como é que é visto. Mas ao mesmo tempo, não quer ter que explicar situações interiores, não quer ser mal interpretado. Queria só escrever. A gente busca a liberdade de expressar nossos sentidos, quer sempre escrever mais e melhor, quer ser capaz de pintar com palavras retratos da nossa alma no momento da escrita. Quer ser livre. Mas a nossa liberdade é por nós mesmos tolhida ao selecionarmos os pensamentos, repensarmos frases, palavras e expressões que possam - ou não - gerar qualquer tipo de reação adversa em quem nos lê. Em momentos em que a alma nos pesa e a escrita poderia ser uma libertação - se dividirmos o que nos assola com quem quer que nos leia - muitas vezes paramos. Sabemos que, ao dividir nosso peso, podemos estar fornecendo material para quem quer justamente o oposto: descarregar sua futilidade e vazio em cima de nós.
   Na impossibilidade de me definir, de entender o que realmente quero do ato de escrever, continuo a fazê-lo. Mas escrevo sem compartilhar o que quer que eu pense e diga; preferi um blog privado, fechado, onde absolutamente nada nem ninguém me impede de dizer exatamente o que desejo. Um lugar onde não preciso me preocupar com os abutres da minha alegria. 
   Esta também é a razão pela qual não tenho postado muitas fotos, nem publicado em nenhuma rede social as "interioridades" que costumava postar. Cresci e virei adulta, e entrei em uma fase específica da vida em que a minha bagagem é tudo o que meus braços desejam suster: não preciso mais carregar a insuficiência da vida alheia. 

   Isto não é uma despedida deste blog, muito pelo contrário: é uma justificativa por tanto tempo passado com textos cada vez mais raros. Pretendo voltar a escrever aos poucos, conforme for aprendendo a não ser mais assunto, à medida em que reaprender a maravilhosa arte da observação. 

terça-feira, 15 de março de 2011

Silêncio - I

O silêncio é poético. Muito já se escreveu sobre ele, e ele frequentemente é associado à ideia de sabedoria. Talvez pelo fato de as pessoas sábias falarem pouco e ouvirem muito, talvez pela simples incógnita contida em um par de olhos fixos e lábios selados.
Silêncio é estratégia. Quando falamos pouco, é mais fácil calcular tudo o que dissermos, aumentando o nosso controle sobre a imagem que as pessoas tem de nós, e diminuindo o risco de cairmos em contradição.


***

Ouvir música é uma delícia. Faz bem à alma, à mente e ao coração. Pertenço ao grupo de pessoas que acredita que a vida deveria ter trilha sonora. 
Mas o silêncio é igualmente prazeiroso. Todos precisamos de momentos em que as palavras ritmadas não nos assomem o pensamento. Precisamos, algumas vezes, dar uma folga à audição, para usufruirmos com maior intensidade dos demais sentidos.

Meu silêncio, nos últimos meses, é absolutamente interior. Nem estratégico, nem poético. Apenas reflexo de mais uma transição. Não é a primeira vez, e nem será a última em que as mudanças em mim são tão expressivas, que aplico o silêncio à escrita para desvencilhar-me de uma inverdade. Porque, em um período de transição, qualquer coisa que eu escreva será, potencialmente, uma mentira.